O moderador e tradutor Michael Kleger fica surpreendido com o silêncio que se faz quando os escritores se sentam no palco e elogia o “leque geográfico” de autores, afinal é preciso não esquecer que este encontro na Póvoa de Varzim é de língua portuguesa e espanhola e elas são faladas em todo o mundo. É o caso da cubana Karla Suarez que adotou Lisboa como morada; de Afonso Cruz que “como pessoa é ele próprio um livro”; de João Tordo, “o Prémio Saramago” e de Sandro William Junqueira, que “nasceu na antiga Rodésia”. É este quem começa o debate, lendo os textos que preferiu trazer em vez de perorar de improviso. Conta histórias que clarificam o tema, conturbadas e sempre com uma data precisa a marcar os acontecimentos da vida de quatro protagonistas. Um deles, obrigado a escrever um texto sempre adiado porque uma cobra no exterior da casa o assustara. A intervenção de Junqueira surpreende os que assistem em direto ao trabalho de um escritor, pois reproduz em direto a angústia do escritor em torno do tema e que, mesmo depois de quase tudo já ter sido escrito, o faz desse mesmo modo para mostrar que a língua nunca se esgota. Karla Suarez segue e confirma que o encontro é ibero-americano ao falar em cubano e explicar como as ideias se transformam em textos e as palavras ganham a sua própria vida. “Quem nos lê?”, pergunta. “Quem é o leitor final?”, continua. “Quem atormenta o autor?”, questiona.
O tempo do gago e o fim das manhãs
João Tordo tem uma opinião sobre este tema da sessão matinal e escolhe a sua gaguez como assunto da apresentação. A brincar, avisa que deveria ter mais do que dez minutos porque não é tão rápido a falar como os restantes. Recorda dois personagens seus, gagos, e explica porque ser escritor lhe iria facilitar a vida. Refere o medo de falar e como a escrita é um refúgio desde criança, situação que comprova com a exibição de três histórias que escreveu em pequeno, como a do Super-amendoim e do Gato do espaço. Afonso Cruz é o escritor que se segue no debate matinal e confessa logo que as manhãs deveriam ser abolidas. Não santifica a dor mesmo que aceite que a criação literária provoca sofrimento. Acha que o sofrimento dos autores é mais poético do que uma realidade e que há os que mesmo no sucesso sofrem imenso.
Enquanto falam o auditório fica repleto. O moderador não deixa terminar a sessão sem sugerir que após conhecerem os escritores podem ir à tenda erguida no exterior e comprar romances, contos, teatro e poesia, produção habitual dos participantes destas edições de um dos eventos literários mais duradouros e importantes em Portugal.
Na feira do livro são muitos os que folheiam os volumes dos autores que estão presentes nesta edição. A mostra é grande e quem lançou um novo livro nas últimas semanas ou no próprio evento espera que nesta tenda sejam vendidos os primeiros volumes ou mais alguns a acrescentar aos das livrarias. O responsável, Alfredo Costa, confirma esse vaivém de leitores após cada sessão e revela que deverá vender cerca de mil livros: “As pessoas escutam os autores e aqueles que os surpreendem despertam logo curiosidade em se conhecer a obra.” É normal os leitores do festival entrarem na tenda, explica, “porque depois das mesas as pessoas têm tendência para vir comprar os livros desses autores que se destacaram nas intervenções”. Entre os livros que mais venderam nesta edição está o recente romance de Isabel Rio Novo.
Um “bestselller” inesperado foi o romance do colombiano Juan Gabriel Vásquez, o vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa e que ausente foi convidado a vir receber o galardão pessoalmente ontem na sessão de encerramento do Correntes d”Escritas. Assim fez, metendo-se no avião e chegado na própria manhã a Portugal para ver consagrada a sua obra A Forma das Ruínas, um prémio que pela primeira vez foi dado a um autor sul-americano.
O que vale um festival?
A proliferação de festivais literários pelo país exige fazer a pergunta sobre se estes eventos ajudam os livros a serem mais conhecidos do público que os frequentam. Fez-se essa questão a alguns dos autores com livros novos e a serem lançados no Correntes d”Escritas e as respostas são muito diferentes. O brasileiro Eric Nepomuceno é entusiasta: “Faz muito pelo nosso livro. Este é o segundo festival a que venho em Portugal e no primeiro, o da Gardunha, encontrei um editor para o volume de contos que está a ser lançado neste Correntes. Também é importante termos contacto com um bicho que nos é completamente estranho aos autores, que é o leitor.”
Do Peru veio Renato Cisneros apresentar Deixarás a Terra, um romance que ficciona histórias de família. Considera que os festivais valorizam mais os autores que os livros, mas também o que nós somos “é embaixadores deles. Levei oito anos a fazer este romance e gosto de falar dele, mesmo que o importante seja o contacto com os leitores porque são eles que nos explicam o livro que escrevemos”. Hugo Mezena publicou o seu primeiro romance, Gente Séria, e acha que o autor só tem a ganhar com a presença nestes eventos, porque “além do contacto com os leitores conhecemos outros escritores e percebemos quais as suas formas de trabalhar”. Julieta Monginho lançou Um Muro no Meio do Caminho, um retrato dos refugiados em busca de paz na Europa. Não é muito frequentadora de festivais, mas acredita que “toda a divulgação é importante e esta pode dar uma boa visibilidade a um novo livro”. Ana Luísa Amaral acha que o Correntes permite reencontrar colegas “porque é um festival diferente dos outros e há muita gente a ver os livros”. Bruno Vieira Amaral refere que “mais do que um livro em particular, ajuda a obra toda do autor.” Valério Romão também lançou Cair Para Dentro, e considera que o evento ajuda a mostrar o livro às pessoas que estão na área: “Quanto ao público, creio que não terá um influência imediata muito grande.”
Uma nota final. Enquanto a sessão decorria, os últimos lugares vazios do Cine-Teatro Garrett ficaram ocupados. Até alguns degraus serviram de cadeira, porque aqui, na Póvoa de Varzim, pode dizer-se que os leitores não perdoam. O único que não pôde encontrar o seu lugar foi o escritor angolano Helder Sinbad, a quem a burocracia da embaixada portuguesa em Luanda não concedeu visto em tempo útil.