“É preciso encontrar outras maneiras de termos uma entidade partilhada que não passe exclusivamente pela língua” – o alerta pertence ao escritor moçambicano Mia Couto, que foi a 8 de fevereiro a personalidade convidada para a 2ª edição do ciclo de conversas ‘Camões dá que falar’, ao abordar o tema da lusofonia, uma questão em que, segundo o autor de Terra Sonâmbula (1992) existe “um certo desfasamento” entre “a expectativa que se cria, por exemplo, no Brasil e em Portugal, e a maneira como os africanos deveriam aderir, até emocionalmente, com afeto, a este projeto”.
Nesta sua conversa perante uma plateia a transbordar do auditório do Camões, I.P em Lisboa, Mia Couto tratou na sua intervenção inicial, além do tema da lusofonia – evocando a “sensibilidade diferente que Moçambique tem em relação ao projeto da lusofonia” –, do Prémio Camões, que o escritor moçambicano ganhou em 2013 (sendo o mais novo dos premiados), relativamente ao qual defendeu uma estratégia de promoção que lhe dê o prestígio e o reconhecimento que em seu entender ainda não tem, tanto internacionalmente como dentro do seu “próprio espaço”, os países de língua oficial portuguesa.
OS NÚMEROS FALAM POR SI
A língua portuguesa não é vista por alguns moçambicanos como uma herança deixada no seu país pelo Portugal colonizador, porque “os números são muitos claros” e mostram que foi após a independência de Moçambique, em 1975, que se deu a maior expansão do uso do português no país. Estes factos foram trazidos a terreiro na intervenção do escritor Mia Couto na conversa ‘Camões dá que falar’, este mês de fevereiro, a propósito das questões da lusofonia e o autor moçambicano reconheceu que “aqui há uma certa desavença, às vezes não proclamada”, que desdramatizou dizendo: “não é grave”. O antigo jornalista lembrou que a decisão tomada pelo movimento de libertação nacional FRELIMO, em 1962, no seu I congresso na Tanzânia, de que o Moçambique independente seria um país de língua portuguesa foi “muito provavelmente” registada numa ata em língua inglesa, “porque a maior parte dos quadros nacionalistas naquela altura tinha sido educada em países limítrofes”.
Enunciando os números dos diversos recenseamentos, Mia Couto disse que em 1975 só 20% da população moçambicana falava português, correspondente às populações que viviam junto das cidades. Em 1980, esse número saltou para 25%, com 1% a declararem ser o português a sua língua materna. Em 1997, os falantes de português já eram 40% da população (6,5% como língua materna) e, em 2016, 52% (12% como língua materna). “Esta tendência é crescente. Cada vez mais moçambicanos falam português. Cada vez mais têm o português como língua materna”, frisou Mia Couto. É isso que leva alguns moçambicanos a dizerem ‘nós fizemos mais pela língua portuguesa em 40 anos do que os portugueses fizeram em 400’, referiu o escritor, considerando que não haver aqui “um apontar de culpa, um dedo que acuse o outro”. O “Portugal de hoje não é nem pode falar em nome do Portugal de ontem, um outro. E se Moçambique fez isso é porque devia fazer, tinha de fazer. E não fez isso certamente para aborrecer os portugueses”.
A MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA PORTUGUESA?
Admitindo poderem esses projetos serem “mal vistos”, Mia Couto considerou que “quanto mais os portugueses ajudarem (…) este projeto de ensinar nas línguas moçambicanas, do país, mais o português fica rico. Estas coisas não se excluem”. Há “uma certa pressa que leva a que muitas vezes não haja a necessária atenção para não se ferir suscetibilidades do outro lado, de parte a parte”, apontou ainda o escritor, que identificaria alguns elementos discursivos da lusofonia que lhe colocam questões. A primeira que enunciou foi a “insistência” na citação de Fernando Pessoa a minha pátria é a língua portuguesa, “repetida até ao infinito”. Pessoa “não disse exatamente isto (…), não disse nesse contexto em que está a ser citado” e, “se isto é assumido como uma verdade, então essa maioria dos moçambicanos, ou não fala português, ou falando português não tem o português como língua materna, não se revê de maneira nenhuma nisto”.