“PREFIRO O CONTO, QUE ME DÁ O BALANÇO PARA PODER CAMINHAR COM A LÍNGUA PORTUGUESA”

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A língua portuguesa em Moçambique está bem viva, mas a sua sobrevivência depende da incorporação de significados de outras línguas. É isso que Ungulani Ba Ka Khosa tenta fazer nas suas obras, tornar a língua portuguesa mais moçambicana. Da sua relação com a literatura portuguesa, o escritor revela que começou por sentir que tinha que […]

A língua portuguesa em Moçambique está bem viva, mas a sua sobrevivência depende da incorporação de significados de outras línguas. É isso que Ungulani Ba Ka Khosa tenta fazer nas suas obras, tornar a língua portuguesa mais moçambicana. Da sua relação com a literatura portuguesa, o escritor revela que começou por sentir que tinha que pedir licença para poder ler: “tinha que limpar bem os sapatos”. “O que diz Molero”, de Dinis Machado, mostrou-lhe outra dimensão da literatura portuguesa, com quem passou a conversar à varanda. O autor fez a sua estreia ontem no Festival Literário de Macau – Rota das Letras.

Fotografia: Eduardo Martins

“Tenho uma grande preocupação com a minha escrita, não deixar que a memória se perca”, afirmou ontem Ungulani Ba Ka Khosa, descrevendo as razões que o levaram a começar a escrever. O escritor moçambicano fez a sua estreia no Festival Literário de Macau – Rota das Letras numa sessão dedicada a “Gungunhana”, a sua obra mais recente, lançada em meados de Fevereiro.

O escritor nascido em 1957, autor de vários romances, contou que o seu percurso literário foi “um aprendizado” para “tentar encontrar a minha família literária para poder retratar o meu país”. Moçambique é um país diverso, “tem mais de 23 línguas”. “É óbvio que toda a gente pensa que a língua portuguesa pode se perder em qualquer esquina, numa floresta, num bairro. Mas, não é isso que acontece. A língua portuguesa está bem viva, e é uma língua que veio para ficar. Acima de tudo, a sua sobrevivência está em poder incorporar significados das outras línguas”.

Na análise do autor de “Ualalapi”, obra de 1987 que integra a lista dos 100 melhores romances africanos do século XX, “em Moçambique, a língua portuguesa é a única língua com cidadania. O português é a língua oficial, é a língua que se veicula, e as outras línguas quase que emergem como línguas subsidiárias. Acho que para a sobrevivência do português, para tornar o português moçambicano, é necessário que essas línguas contribuam com os seus significados e eu, modestamente, contribuo, tento também chegar à literatura”.

À varanda com a literatura portuguesa

Fotografia: Eduardo Martins

O autor leu muitos livros antes de começar a escrever. “Eu sou daqueles que leu para escrever”, disse. Em relação às distinções e prémios que a sua obra já recebeu, afirmou que aquelas “alegram-nos”, mas “não devem interferir na escrita”, até porque “cada um [autor] tem o seu músculo”.

Sobre a sua relação com os autores portugueses, Ungulani conta que fez uma aproximação cautelosa. “Aos meus 18, 19 anos foi uma literatura em que tinha que pedir licença para poder estar lá, porque não podia ter os pés sujos, tinha que limpar bem os sapatos quanto tinha que ler uma Agustina Bessa-Luís, o [Miguel] Torga, o Vergílio Ferreira. De certo modo, aquilo era um pouco pesado para o meu mundo. Mas, a partir de um livrinho que saiu em 1977, de Dinis Machado, ‘O que diz Molero’, depois apareceram esses autores todos, o [António] Lobo Antunes, por quem, de certo modo, fui um grande apaixonado (…), [José] Saramago. A literatura portuguesa, a partir dos anos 1980, ganhou outra dimensão, nós já podíamos levá-la à varanda, conversar com ela, beber um vinho. Mas, antes não, aquilo era uma literatura toda muito bem-comportada, então eu tive a sorte de calhar como leitor numa fase muito rica da literatura portuguesa”.

A democratização do livro

Fotografia: Eduardo Martins

Ungulani lamenta não ter mais acesso aos autores das novas gerações. “Infelizmente os mais novos não nos chegam com frequência, e esse é um grande mal, não temos autores dos nossos países a circular com muita frequência, felizmente temos estes festivais que nos ajudam a conhecermo-nos e a trocarmos livros”, comentou.

Ungulani afirmou nunca ter escrito um poema por considerar a poesia “território sagrado”. “Prefiro estar no conto, que me dá algum balanço e, de certo modo, há este lado da oralidade, a gente quando fala de oralidade é este tentar que a língua portuguesa me dê o balanço, o balanço para eu poder caminhar com a língua, um pouco como [José] Saramago faz nas suas obras. (…) Queria que fosse uma salsa, uma valsa, uma boa marrabenta [dança moçambicana], então é toda esta procura de movimento, dessa tonalidade, dessa oralidade, e isso não dá para a poesia”, explicou.

O autor comentou ainda que “hoje há uma grande facilidade em publicar livros, o que não há é distribuição do livro”. Na opinião do autor, “o número de livrarias não é indicador da literacia, o grande indicador são as bibliotecas. “A grande aposta para os nossos países, e no caso concreto de Moçambique, são as bibliotecas públicas, que devem emergir em quantidade para que o livro se democratize”.


Fonte: Ponto Final
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