
Desde muito cedo ouvimos que há um recanto escondido na ponta extrema da Ásia em que, por um acaso histórico, fala-se o português. A cidade de Macau, situada numa península na região onde está a província de Guandong, no extremo sul da China, é uma das duas que possui o status de Região Administrativa Especial, com autonomia administrativa plena, exceto para assuntos de relações internacionais e defesa nacional.
Por isso, até hoje mantém a língua portuguesa como idioma oficial, o que lhe rende boas relações comerciais e diplomáticas com os países lusófonos, aí incluindo o pertencimento à Associação dos Países de Língua Portuguesa (sendo o conceito de país adaptado a Macau, cujo país, de lei e de fato, é a China. O mesmo faz a commonwealth britânica para receber Hong Kong).
Ambos os casos de Hong Kong e Macau são exemplos tardios da descolonização europeia na África e na Ásia, que teve seu ponto alto dos anos 1940 a 1970, quando vários países se tornaram independentes após o enfraquecimento das potências colonialistas no pós-Segunda Guerra Mundial. Hong Kong retornou à China em 1997 e Macau, em 1999. As duas cidades mantiveram sua autonomia administrativa em respeito à trajetória politica e econômica diferente daquela do restante da República Popular, não tendo passado pela luta revolucionária de 1949 e pelos desafios da afirmação da soberania chinesa que dela decorreram. Assim, o gesto de compreensão e tolerância do ex-presidente Jiang Zemin (1993-2003), que liderou o processo de transição junto ao Reino Unido e a Portugal, respectivamente em Hong Kong e Macau, permitiu que ambos preservassem suas características próprias, inclusive a língua.
Aí reside o inusitado fato de uma terra em pleno continente asiático, região especial da China, preservar o português como seu idioma oficial, ao lado do chinês mandarim, ainda restando o cantonês na extraoficialidade. Por todos os lados, as placas de trânsito e as indicaçoes de lugares estão em português europeu e mandarim. Nas regiões históricas, afiguram-se as duas línguas nos tradicionais ladrilhos azuis e brancos portugueses. O cantinho luso-chinês de 600 mil habitantes, hoje conhecido por seus cassinos, ainda preserva, no seu centro antigo, a arquitetura das pedras portuguesas no chão, do casario à Ouro Preto e das missões jesuíticas. O ponto turístico mais importante, as Ruínas de São Paulo, é a fachada de uma missão que lembra muito aquelas que se encontra no Sul do Brasil. Ainda há, porém, dezenas de Igrejas e fortes que lembram os que se vê por todas as cidades históricas brasileiras e portuguesas.
Mantendo a tradição luso-chinesa, Macau orgulha-se, ainda, de ser a região reintegrada que mantém melhores relações com Pequim, à frente de Hong Kong. Por outro lado, luta para manter o português como idioma local e, assim, usufruir dos benefícios de pertencer à comunidade da língua portuguesa. Isto porque, na prática, a distância do mandarim e do cantonês para o português, a falta de necessidade de se dominar o idioma desde que os europeus passaram o comando da cidade para a China, além da pouca aplicabilidade do português na academia, no comércio e nas relações internacionais, fazem do português um idioma pouco atrativo aos jovens que nasceram depois de 1999 ou mesmo antes, sem ter vivido muito tempo sob Portugal. O caso é diferente de Hong Kong, onde a oficialidade do inglês se faz cumprir na força econômica da commonwealth e no caráter de língua internacional do idioma de Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Os esforços para manter a identidade luso-chinesa vão, portanto, muito além das trocas comerciais prioritárias. Se em Macau se encontra café brasileiro, refrigerante de guaraná, pastéis de Santa Clara, bacalhau, e comidas africanas, além de produtos de toda ordem de origem em países lusófonos, também celebra-se festivais de cultura China-Portugal, mantidos desde que a cidade passou ao Governo chinês. Igualmente, escolas são mantidas no centro de Macau para ensino da língua portuguesa, além de bolsas que são pagas para que estudantes se aperfeiçoem no Brasil, em Angola, Moçambique e Portugal. As autoridades de Macau com quem o Brasil 247 conversou relatam que, primeiro, o lapso no português é sentido e admitido, com a percepção latente de que a cada dez anos o idioma é menos falado no dia a dia. Segundo, que esperam do Brasil uma melhora econômica urgente, visto que o país é central para todos os parceiros da lusofonia, uma vez que é a oitava economia do mundo, tendo já ocupado o sexto posto. Este seria, inclusive, um vetor de incentivo a que os macaenses aprendam o segundo idioma oficial da cidade.
Por questão de cultura, de tradição, mas, mais importante, de relações comerciais com a China através de um importante entreposto no país, é importante que a comunidade lusófona se esforce para não perder Macau, como já ocorreu com Goa, antiga comunidade de língua portuguesa na Índia onde o idioma já é declarado morto.