
A entrada da língua portuguesa no calendário dos dias celebrados pela UNESCO e pelas Nações Unidas
Como sabemos, cabe à Assembleia Geral das Nações Unidas a proclamação de dias internacionais, que suas Agências especializadas, como a UNESCO, designam de dias mundiais. Tal deliberação coube, assim, a cento e noventa e três Estados, na sua 40.a Conferência Geral, a 27 de novembro de 2019. É a primeira língua a receber este atributo.
Qual o fundamento? Citemos dois registos: (i) “Reconhecerem o papel e a contribuição da língua portuguesa para a preservação e disseminação da civilização e da cultura humanas”, e (ii) ser ela “a língua mais falada do hemisfério sul”. Assim, o dia 5 de maio, no calendário dos dias celebrados pela UNESCO e pelas Nações Unidas, passa a figurar como o Dia da Língua Portuguesa. É a língua oficial de nove países, com cerca de 260 milhões de habitantes. É a língua organizadora desses países e seus habitantes, numa Comunidade singular no mundo – a CPLP, ou Comunidade de Países de Língua Portuguesa. É a língua da ciência nos séculos XV e XVI: a ciência náutica, com Henrique o Navegador; a ciência matemática, com Pedro Nunes, insigne professor da Universidade de Coimbra; a ciência médica com Garcia de Horta, cuja obra, na expressão camoniana, daria “à Medicina um novo lume”, e, nas palavras de Almeida Garret, “não é apenas um tratado de ciência, mas também um monumento da história da arte e da linguagem”. É a língua com um futuro promissor, nos países seus falantes e nos organismos internacionais. É a língua celebrada mundialmente, a partir de agora.
A primeira língua global – ontem: desde o século XV, suporte das trocas comerciais e do património edificado por todo o mundo
Em 1498, Vasco da Gama liga o Ocidente ao Oriente, ao chegar à Índia. Em 1500, Pedro Ávares Cabral aportou em S. Vicente, no Brasil. Faltava Fernão de Magalhães unir o oceano Atlântico ao Índico em outubro de 1520, para se descobrirem duas realidades: (i) a superfície do planeta é mais agua ou mar do que tena; (ii) nesse mar imenso, navega a língua portuguesa. Quer dizer, nasce a primeira língua global com a descoberta do globo terrestre! Até parece que Fernando Pessoa se antecipou a Camões para, poeticamente, dar essa notícia ao mundo, em língua portuguesa, quando diz no poema “O Infante”:
[…] Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que ornar unisse, já não separasse […] E a orla branca foi de ilha em continente, / Clareou, correndo, até ao fim do mundo / E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir, redonda, do azul profundo./
Presença dessa globalidade linguística encontramo-la, também, na quantidade de objetos e equipamento disperso pelo mundo, que acompanhavam os navegadores e aqueles que se ficavam nas mais remotas paragens. Desde o culto religioso – imagens sagradas, paramentos, e outros objetos de culto – às ofertas diplomáticas entre navegadores e seus soberanos e os servidores locais, nomeadamente, panos, utensílios e louças.
Tais obras não seriam apenas originárias de Portugal, mas, provavelmente, a partir de dada altura, seriam também de África, do Brasil, da Índia, da China e do Japão. Viajavam, porém, em língua portuguesa, como vemos, entre contextos multilingues e multiculturais. De África para a Europa, desde a lª viagem ao Congo, que seguiam muitas peças de marfim e panos, muito bem tecidos e de muitas cores. Outro veículo da língua portuguesa pelo mundo foi o património edificado e os materiais e logística a que se recorreu como fortes, castelos, igrejas e mosteiros, dos quais permanecem imensos vestígios e representações. Repare-se nos exemplares bem conservados e observáveis aqui na ilha de Santiago, um pouco por todo o lado, mas, em especial, na Cidade Velha e na Praia. Havia, ainda, a movimentação de “obras de arte objetos manufaturados e preciosidades” de vária natureza, para e do Oriente, em especial, a Índia. Eram ou para oferecer ou para moradias, palácios, castelos, fortes… A política de aproximação aos potentados orientais, obrigava à oferta de ricas dádivas ou ofertas valiosas dos europeus aos orientais, porque a elas estavam habituados por anteriores “viajantes, mercadores e embaixadores que os visitaram anteriormente Eram elas, alfaias de culto paramentaria e outras obras religiosas; mais tarde a oferta de livros.
Este movimento de trocas ocidente/oriente e vice-versa, a dada altura, altera-se e realiza-se entre regiões do Oriente, encontrando-se em mãos de armadores nacionais portugueses. É assim que o P.e Francisco Pasio, jesuíta italiano, se exprime ao chegar a Goa, em 1578, a propósito das porcelanas chinesas:
É tanta a porcelana e a um preço tão apetecível, que não vi ninguém aqui que fizesse pratos, escudelas e coisas semelhantes em bano, porque a porcelana se vende tão barata que não se poderiam vender vasos em argila por um preço tal sem perder tempo e despesa; e até usam porcelana para pôr debaixo da cama, para dela se servirem de noite..
Uma língua global – hoje: em diálogo com outras línguas – nos PALOPs e Timor, nas organizações internacionais, em Leitorados e em ensinos secundários
A língua portuguesa aprendeu desde muito cedo a conviver com outras línguas. Por isso ela segue viagem hoje, com abertura, dialoga com uma diversidade enorme de línguas entre as mais faladas no mundo.
Quais? Em primeiro lugar, com as línguas daqueles povos cujos países se reuniram numa comunidade singularíssima, que ela própria define e patrocina, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Trata-se de uma riqueza incalculável para todos nós, numa aritmética onde dois mais dois são sempre mais de quatro! Porquê? Responde quem sabe, ainda, Fernando Pessoa quando afirma: “De sempre, com o comerciante e o mercador vai sempre a arte, a técnica, a ciência, a cultura” e, com estas, vai a língua. Porque sintetiza: “O fenómeno cultural acompanha o fenómeno comercial, [são] de um paralelismo flagrante e exato”. Nestes países da CPLP, a LP desempenha um papel de Uso comunicativo-institucional/oficial, isto é, desempenha uma função histórico-cultural, introduzindo-se na dimensão identitária de seus povos e de suas gentes.
Em segundo lugar, o convívio da língua e cultura portuguesas com outras línguas e culturas estende-se hoje por centenas de universidades e escolas secundárias dos quatro cantos do mundo, isto é, em contextos multilingues e multiculturais. Aí dialoga com outras visões do mundo. Todavia, poucas línguas terão o mar no seu horizonte como a nossa. É Vergílio Ferreira, em Bruxelas, na Europália, a 28 de novembro de 2011 que o destaca: “Da minha língua, vê-se o mar”. Eis como ele desenvolvia esta metonímia:
Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi, em nós, a [voz] da nossa inquietação Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós.
Nessas instituições, o papel da LP é de uso comunicativo-funcional: isto é, desempenha uma função de estudo e conhecimento científico e cultural. Por último, a Língua Portuguesa dialoga, ainda, nas organizações internacionais, da política à economia, da cultura ao desporto da ciência à técnica. Ela desafia mesmo outras línguas a partilhar espaços de divulgação de todas elas em conjunto, como ouvimos o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros propor aqui, no Instituto Internacional da Língua Portuguesa, em presença de vários embaixadores de países credenciados, na Praia.
A língua portuguesa despontou e floresceu em contextos multilingues e multiculturais
Do latim, recebeu as estruturas e a maior parte do vocabulário embora cedo tenha conquistado a sua identidade, ao afastar-se do romance ou maneira de falar à moda de Roma – um linguajar comum ao espaço das línguas românicas, anterior à sua formação: espanhol, italiano francês, romeno – às quais poderíamos juntar catalão, galego, provençal, romanche e sardo. Sempre conviveu bem com as línguas irmãs – tendo partilhado o território galaico-português com o galego considerando-se, ainda hoje, línguas gémeas. Mas para seu enriquecimento, reteve elementos de povos que, antes da romanização, habitaram a Península Ibérica: iberos – com palavras como baía, cama, bezerro, bocarra; celtas – com vocábulos como camisa, raio, touca; fenícios e cartagineses – deles herdámos as palavras barca, mapa e saco, entre outras; gregos – academia, democracia, liceu, são exemplos da sua herança; hebreus – aleluia, sábado, amém. De outros povos europeus e suas línguas fixou outros termos: inglês – do âmbito do desporto, futebol e clube; outras – bife, gim, jóquei; alemão – deixou-nos, gás, valsa, vagão e zinco; russo – csar, estepe, vodca; polaco – mazurca, polca; holandês – escuma, quermesse. De África temos: girafa, banana, zebra, cachaça, batuque; da América Latina herdou: canoa, furacão, cacau, batata, tomate, alpaca, mate; da Ásia a LP recebeu: bule, bambu, biombo, chá, chávena, sândalo.
Em Cabo Verde, observamos uma abertura do Português falado por cabo-verdianos à influência de formas integrantes, vindas, em especial, dos modos de falar a língua do país, o crioulo ou o cabo-verdiano. Como exemplo, de um estudo realizado numa dissertação de Mestrado, na Universidade de Cabo Verde, refiro o uso singular do se, reflexo e/ou indefinido. É urgente os linguistas debruçarem-se sobre essas marcas inovadoras do português falado no país, para verificar o surgimento de uma variante local ou para observar a sua evolução no sentido da norma brasileira ou europeia.
Em conclusão
Pretendíamos trazer aqui duas ideias simples: a primeira, que a língua portuguesa acompanha as viagens históricas dos seus falantes, ao longo da sua história; prova disso foi o comércio secular e o património edificado pelo mundo em língua portuguesa. A segunda era que a língua portuguesa é construtora de pontes: (i) entre povos irmãos, na CPLP; (ii) em institutos e organizações internacionais; e (iii) entre pessoas, nas relações culturais, científicas e interpessoais, após o seu estudo em centenas de universidades e escolas secundárias um pouco por todo o lado. Esta maneira singela de celebrar o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, por parte da Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa (CET-LP), recorre à utilização de uma forma de comunicação que até agora tem sido de recurso. Contudo, como vemos, poderá bem sair da pandemia, que a todos nos tomou, como um novo espaço de interação: a institucionalização da comunicação científica e cultural à distância.
Fonte: Press
Imagem: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa