A partir desta quarta (28), evento traz debates com cerca de cem autores nascidos em oito países que falam o nosso idioma; o angolano José Eduardo Agualusa e a mineira Conceição Evaristo são os homenageados em 2020.

O escritor angolano José Eduardo Agualusa, 59, teve de deixar o país onde nasceu por questões políticas no fim da década de 90. Ele exilou-se em Olinda, Pernambuco, e depois no Rio de Janeiro. Voltou a Angola cinco anos depois, para sair novamente e morar por uns bons anos em Portugal. Nos últimos tempos, tem se dividido entre Lisboa e Ilha de Moçambique, cidade ao norte do país africano. Esse trânsito deu a Agualusa a oportunidade de se aprofundar na literatura produzida nos diferentes países, e ele percebeu que a totalidade da língua portuguesa em suas diversas expressões, não apenas a angolana, é o que o fascinava.
“Creio que existam várias variantes da língua portuguesa, o Brasil é o país que mais tem variantes, e cada variante sustenta uma cultura. Tento trazer isso para os meus romances. Morar nesses lugares me ajudou a olhar para nossa língua de outra forma: na sua globalidade, em todo seu esplendor”, comenta o escritor.
Por perseguir em sua literatura essa universalidade da nossa língua que tanto o arrebata, é emblemático que o angolano seja um dos homenageados, ao lado da mineira Conceição Evaristo, da nona edição do Festival Literário de Araxá, que começa nesta quarta-feira (28) e segue até domingo com programação virtual (veja detalhes no fim da matéria).
Em 2020, o evento gira em torno de um tema-conceito que sai diretamente de uma frase do português José Saramago (1922-2010) no documentário “Língua: Vidas em Português”, de Victor Lopes: “Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”.
Para dar conta dessa amplidão, o Fliaraxá apresenta debates com cerca de cem autores de Portugal, Brasil, Cabo Verde, Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, entre eles Ondjaki, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Djamila Ribeiro, Nélida Piñon, Heloisa Starling, Lilia Schwarcz, Milton Hatoum e Ailton Krenak.
Segundo o escritor, idealizador e curador do Fliaraxá, Afonso Borges, o festival, desde a primeira edição, busca esse intercâmbio entre a língua portuguesa e os escritores de diversas origens para criar um diálogo histórico e literário tão importante quanto necessário. Em 2020, o que ele chama de tema-conceito acaba por costurar e deixar ainda mais fortes e vivas as conexões existentes entre as produções dos escritores nascidos nos oito países.
“Encontrei a frase do Saramago em um documentário, e ela resume tudo o que penso, tudo que na verdade é. E é mais: a língua portuguesa é a mais diversa do mundo. Ela espelha a condição social, cultural, educacional e de tradição de capa país em que é falada. Isso é muito raro”, avalia Borges, que, direto do palco do Teatro Tiradentes, no Grande Hotel de Araxá, sem público, fará a mediação de várias atividades.
O escritor e crítico literário Tom Farias participou do Fliaraxá em 2019 como convidado e, neste ano, integra a equipe de curadoria do evento, que ainda tem a escritora e historiadora Heloisa Starling e o cientista político e escritor Sérgio Abranches. Farias será o mediador de duas mesas, entre elas “Literatura, identidade e pertencimento”, com a brasileira Elisa Lucinda, a são-tomense Olinda Beja e o guineense Abdulai Silá.
“Essa mesa tem bastante esse propósito de mostrar que, embora diferentes, nós somos iguais. Minha ideia é unir esses diálogos, confluir essa linguagem e buscar quais são os encontros dessas literaturas”, afirma.
Totalmente online
Com todas as adaptações à pandemia, o Fliaraxá, que, tradicionalmente, acontece em junho e teve de ser repensado para outubro, migrou todo seu conteúdo para as plataformas digitais e vai mesclar programações ao vivo (com todos os ajustes que diferentes fusos horários exigem) e gravada. Em meio aos aprendizados e às superações de dificuldades de ordem técnica, Afonso Borges brinca que foi preciso muita coragem para colocar o festival de pé. “É uma experiência novíssima. Passei a pandemia procurando referências, e não há nenhum festival literário como esse acontecendo no mundo”, ele diz.
Festival também celebra Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Calmon Barreto
Em 2020, o Fliaraxá tem como patronos João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector, por ocasião do centenário da dupla neste ano, e o araxaense Calmon Barreto. Uma das convidadas desta edição, a escritora Marina Colasanti vai participar de uma mesa com Nélida Piñon, que vai versar sobre Clarice. Marina confessa que, com a imposição da quarentena, chegou a temer que a data redonda referente à ucraniana naturalizada brasileira passasse batido.
“Inclusive porque a Rocco, editora dela, tinha relançado toda a obra, em edições especiais, muito lindas, com capa dura, posfácio… Graças a Deus, não foi tudo pelo dreno. Eu mesma tenho feito muitas lives, gravações, em homenagem a essa figura emblemática da literatura brasileira. Melhor dizendo, essa figura feminina emblemática da literatura”, conta.
Marina Colasanti pode falar de cátedra da escritora. Além de terem sido amigas, ela também foi editora de Lispector no Caderno B do “Jornal do Brasil”. “Eu é que cuidava de Clarice quando ela publicava crônicas lá”, diz ela, que também publicou um livro, “Com Clarice”, junto ao marido, Affonso Romano.
Instada a falar sobre a inevitabilidade de a edição 2020 da Fliaraxá acontecer em ambiente online, Marina se revela realista. “É a solução que se encontrou para a população não ficar muda e surda, para podermos ter algum alento cultural, realizar os eventos que já estavam no calendário das cidades. Claro, não é a mesma coisa que participar com público ao vivo, porque aí você tem o olho no olho, sabe se está agradando ou não, pode mudar o rumo da sua palestra… Mas melhor que nada, é. Tudo é melhor do que coisa alguma”, encerra. (Patrícia Cassese)
Programe-se
Com uma agenda intensa de atividades, o Fliaraxá será transmitido gratuitamente via Facebook, YouTube e site oficial do evento desta quarta-feira (28) a domingo (1º). São 24 horas de programação: infantil e infantojuvenil, das 8h às 12h; de espaço dedicado aos autores de Araxá, das 12h às 16h; debates e mesas com escritores nacionais e internacionais, das 16h às 22h. Após as 22h, há reprises. Programação completa em fliaraxa.com.br.
Fonte: O Tempo